Uma ladeira no meio do caminho
Há pelo menos um mês a minha jornada para o trabalho mudou. Antes, era da cama para a mesa com uma suave vista para o mar; hoje, desço uma rua, pego o metrô e depois me dou o luxo de pegar um carro por aplicativo até o trabalho. A troca até pode parecer desproporcional, mas confesso que a sensação é de que ambos os trajetos têm o mesmo tempo de deslocamento.
Mas o tema desse texto não é sobre o tempo que levamos para chegar ao trabalho, muito menos os ônus e bônus do trabalho presencial ou em home office. O tema é o único ponto que difere os dois caminhos para o trabalho: uma ladeira.
Como uma boa cidadã vinda das praias duras e retas de Santos, enfrentar pela primeira vez o caminho até o trabalho presencial teve diversas surpresas. Mas a principal foi a pequena ladeira que descobri que iria encarar todos os dias na volta para casa após o trabalho.
No primeiro dia enfrentando a ladeira, parecia estar subindo uma montanha, enfrentando os desafios da falta de ar, das dores nas pernas, de não acreditar que eu estaria com uma resistência física tão fraca. Nessa primeira batalha contra a ladeira no meio do caminho, o pensamento que povoava a minha mente era:
“Mas também, crescer em uma planície e passar dois anos em home office andando menos de 400 passos por dia, era um preço a se pagar, né?”.
No segundo, a mesma sensação de enfrentar uma montanha. Passado o terceiro, quarto e quinto dia, reparei que só parava para respirar quando estava ao lado de um grafite de uma menina, uma provável marca registrada de um grafiteiro paulistano, já que vi o mesmo desenho espalhado em outros pontos de São Paulo.
Transformei esse grafite no meio do caminho em uma espécie de checkpoint, como os de jogos de videogame. Sentia que se eu chegasse até lá sem passar mal, estaria ‘aumentando de nível’. Os dias foram passando e a ladeira estava lá, se transformando em um algoz cada vez menor no retorno para a casa e o grafite se tornando em um objetivo cada vez mais próximo.
Nessa semana, senti que a montanha diminuiu de tamanho, e que aquela ladeira no meio do caminho, está se tornando somente um erro de construção da cidade, facilmente ultrapassável. E é subindo essa ladeira durante o trajeto que penso:
“Será que aquela santista que só sabia andar em planície e não aguentava subir uma ladeira em São Bernardo do Campo está se transformando em uma outra pessoa?”
A ladeira no meio do caminho me faz evoluir, mas parece que se não há uma dificuldade em subir tanto esta quanto outras ladeiras, deixarei de ser a ‘caiçara’ que tanto reclama do planalto paulistano.
Claro que essa pura neurose passa em questão de minutos, já que chego até minha casa pensando em como a areia dura de Santos é melhor do que a maldita ladeira que poderia ser mais tranquila se não fosse o mau planejamento da cidade. A reclamação, saudável após um dia de trabalho, alivia o cansaço e ainda faz refletir sobre os caminhos físicos e pessoais que me levaram a enfrentar a ladeira do Ipiranga.
Mudar o rumo da vida, no fim, é enfrentar ladeiras, montanhas, pedras e afins. Aparentemente, sem as ladeiras ou pedras no meio dos caminhos, estaríamos em eterno repouso, sem evolução. No fim, o que povoa minha mente é que ao chegar na idade das retinas fatigadas, nunca me esquecerei que no meio do caminho, tinha uma ladeira.