Amor pode até ser líquido, mas é um rio perene
Definir o que é o luto é difícil até para quem já passou muitas vezes pelo mesmo processo, de formas diferentes. A cada novo ciclo de perda, uma maneira mais única de sentir aquela morte.
Há aquela regra geral que quando é alguém próximo, a falta é mais sentida, é profunda, muitas vezes, se assemelha como uma cicatriz que não cura de jeito algum.
E quando é alguém distante, até se lamenta, pensa um pouco na dor da família, presta-se uma homenagem e se reflete um pouco sobre a existência daquela pessoa.
Mas e quando uma morte te faz duvidar até sobre esses dois conceitos que eram tão concretos na mente? E até outros que se tinha sobre amor, conexão e afins?
Pois é. Isso aconteceu comigo.
Desde que li Bauman e sua “modernidade líquida”, entendi que o afeto é cada vez mais raro, ainda mais em uma sociedade que trata o outro como algo descartável. Tanto acreditei nesta teoria, que já vivi situações de descarte.
Mas parece que vivenciei e testemunhei nos últimos dias algo que poderia ser a prova contra esta triste constatação de Bauman. O luto por uma pessoa que nunca vi, conversei ou conheci pessoalmente.
Bauman já estaria pasmo só de saber que tenho amigas virtuais há pelo menos 12 anos, que sabemos tudo da vida uma da outra e que até nos unimos para “apadrinhar” um lindo menino de dois anos.
Agora imagine se ele soubesse que era possível sentir o luto a mais de 1.800 KM de distância? Ele estaria assustado, no mínimo.
Em uma sociedade tão descartável, senti dor por uma amiga que nunca vi pessoalmente, mas que acompanhei até a gravidez no mundo virtual. O pai dela, que tanto me cativou pelos vídeos e fotos ao lado do pequeno neto, faleceu nos últimos dias e, mal sabe ele, deixou saudade em São Paulo, Florianópolis, Balneário Camboriú e Carapicuíba.
Além do amor que a rede social, tão efêmera, fortaleceu, a dor foi amplificada por ela. Até pode ser rara esta situação — e que seja, mas nunca imaginaria estar em tal cenário. Nem eu, nem Bauman.
E as restritas regras de luto que tanto cultivei na mente também se diluíram em apenas dois stories e uma mensagem avisando da morte para minha mãe.
Ela, que se cativou pela amizade virtual ao ver o Diego Henrique, se disse surpresa em ter sentido uma súbita tristeza pela morte do avô do pequeno.
“Parece que está tão perto de nós, que eu fiquei triste, muito triste de saber. Nem conhecia, mas fiquei triste de saber que ele se foi”.
E foi assim, com uma frase, que tudo o que eu acreditava sobre luto, amor, modernidade líquida e afins se esvaiu. Com um simples áudio de WhatsApp.
O amor é tão misterioso quanto a morte, mas mais mistério ainda é o poder da internet reunir as pessoas e diminuir as distâncias. Bauman, parece que aqui neste grupo você errou.
Que Ivanildo, o Bolinha, onde quer que esteja, fique feliz em saber que a filha dele tem parceiras para a vida toda. Mesmo que em distâncias nunca antes imaginadas. Você cativou até quem nunca pensou em cativar.